Alguns anos atrás, eu passeava pela Bienal do Livro de Salvador e encontrei uma biografia de Chico Buarque que me saltou aos olhos. Era Chico Buarque, Para Todos, da coleção Perfis do Rio. Devorei o livro no dia seguinte, no auge dos meus 13 anos. Mas o que mais marcou a experiência não foi o que li sobre o músico, mas como sua história foi contada. Regina Zappa, a autora, terminou se tornando uma grande fonte de inspiração. Quando me perguntavam o que eu queria ser quando crescesse, respondia: “quero ser como Regina Zappa”.
Exatos 10 anos depois, surge a oportunidade de entrar em contato com ela e fazer algumas das perguntas que sempre quis fazer. O tema seria a arte da entrevista, para um
Quais são as suas principais técnicas de entrevista?
Nunca pensei na entrevista em termos de técnica, assim, friamente. A técnica está embutida. Foi algo que fui aprendendo com a minha experiência, com a observação de outros sendo entrevistados. No momento em que eu estou fazendo minha pesquisa, conversando com as pessoas e fazendo a minha abordagem humana com o entrevistado, estou exercitando minha técnica.
Como é o processo de pesquisa antes da entrevista?
Antes de conversar com qualquer entrevistado, mesmo que seja numa entrevista rápida, você tem que pesquisar. Se você vai fazer uma entrevista política rápida, não precisa se aprofundar tanto, mas tem que saber quem é o político e o que está fazendo. Se é uma entrevista mais aprofundada, em que uma pessoa vai falar de um tema que você quer expandir, é preciso se preparar mais. Se for um poeta,você tem que ler as poesias, saber quem ele é,
de onde ele vem. Para essas entrevistas você tem que ir com as perguntas prontas, mesmo que no meio do caminho você se desvie. Precisa saber conduzir a entrevista, e isso vem do conhecimento do assunto. Também é preciso saber aonde você quer chegar, ter em mente a pauta e o que você quer extrair daquela conversa.
Você pode falar um pouco mais sobre estas entrevistas em profundidade?
Há vários tipos. Existe a entrevista profissional, na qual você vai falar com a pessoa sobre o trabalho dela. Tem, também, uma entrevista sobre o pensamento da pessoa. Você pode querer que o entrevistado fique muito à vontade e revele bastante sobre ele próprio. Já que você está falando de técnica, a primeira coisa que você deve estabelecer com o entrevistado, qualquer entrevistado, é uma relação de confiança. Se você chegar logo fazendo perguntas agressivas, ou não demonstrando muita seriedade,
o entrevistado já não vai ter confiança de abrir o coração.
A relação de confiança se estabelece, a princípio,
quando você chega e conversa um pouco com ele, mostrando que você sabe quem ele é, que você pesquisou, que vai entender o que ele está falando. Você chega fazendo perguntas sem muita importância, mesmo que sejam perguntas que você já saiba as respostas.
Você pode dar um exemplo?
Eu fiz uma entrevista com a Fernanda Montenegro que se chama “Representar é um ato de humanidade”, palavras dela. Eu comecei perguntando onde ela tinha feito teatro, por exemplo. Você deixa as perguntas mais densas para depois, mesmo que na hora de escrever você troque a ordem, comece pelo que a pessoa falou de mais importante.
Existem pessoas que, à medida que você vai fazendo perguntas relacionadas a ela, aquilo vai virando quase uma sessão de análise. Às vezes, a pessoa não chega com vontade de falar, depende muito de como você a aborda.
Como ganhar o entrevistado?
Mesmo que seja uma entrevista a favor do entrevistado, ele vai estar sempre tenso, algumas vezes por medo de o entrevistador distorcer o que ele está falando. Acontece, também, de muitos jornalistas distorcerem o que a pessoa diz – porque são incompetentes ou mal intencionados mesmo. Até nas entrevistas em que se quer encurralar uma pessoa, o repórter não pode ser agressivo. Essas são algumas técnicas, mas o principal é você se preparar bem e estabelecer uma boa relação com o entrevistado. Isso é o que vai ditar o sucesso ou fracasso da sua entrevista. Eu acho sempre bom gravar, porque quando a gente escreve, a gente não consegue ficar totalmente atento ao que o entrevistado está dizendo. E, sobretudo, eu tenho medo de mudar o que as pessoas falam.
Qual o maior prazer em fazer uma entrevista?
Conseguir que a pessoa fale com o fundo da alma, com muita honestidade e franqueza, conseguir uma revelação. Dá um prazer muito grande quando a pessoa te fala uma coisa que, talvez, nunca tenha dito pra ninguém. Uma vez fiz uma entrevista com o Silviano Santiago e, enquanto ele falava da vida, da infância, da morte da mãe, eu ia delicadamente fazendo novas perguntas. No final, ele contou que me disse coisas que jamais havia revelado a ninguém.
E a maior dificuldade?
Acho que é quando você sabe que vai entrevistar uma pessoa que não quer falar, que tá dando a entrevista porque tem que dar. Outra dificuldade, mas essa não deveria existir, é quando você vai entrevistar alguém e não dá tempo de se preparar. Nesses casos, você pode ligar pra redação e pedir pra alguém te passar alguns dados.
O que fazer quando se tem muito a perguntar e pouco tempo para as respostas?
Você vai fazer as perguntas mais importantes primeiro. Você pode até dizer ao entrevistado “olha, tem tantas coisas que eu gostaria de saber sobre você, mas eu quero começar com as perguntas que me interessam mais, porque eu sei que a gente tem pouco tempo”. Aí vai direto ao assunto. Muitas vezes, você faz uma pergunta pra um entrevistado e ele começa a falar bastante. Quando você vê que o tempo tá passando e que você não vai conseguir fazer as outras perguntas, você tem que, delicadamente, interromper e dizer, “vamos voltar para uma questão que, pra mim, é muito importante”.
Existem entrevistadores que dizem que é necessário se colocar num patamar superior ao entrevistado para que ele sinta que há uma hierarquia entre eles. Você concorda com isso?
Não concordo com isso não. Acho que isso pode, inclusive, prejudicar a entrevista, porque a pessoa pode se sentir intimidada. O que vale, de verdade, é você mostrar segurança, conhecimento, domínio do assunto, e não se deixar intimidar. Mas isso não quer dizer se colocar em outro patamar. Assim, você mostra que não está ali para se deixar manipular, mas também não está dizendo que é melhor.
E quando é alguém que você admira muito, como lidar com a emoção do contato?
Eu já entrevistei muita gente que admiro bastante. Por exemplo, o Chico. No começo eu ficava muito nervosa, hoje em dia não. Tinha sempre uma atitude do distanciamento para não cair na esparrela de admiradora. Você tem que ter esse controle das suas emoções. Muitas pessoas eu fiquei bastante emocionada ao entrevistar. A Fernanda (Montenegro) é uma delas, o (Oscar) Niemeyer é outro. O Darcy Ribeiro era uma pessoa que me emocionava profundamente. Você pode até deixar fluir um pouco a sua emoção para que isso mova aquela pessoa. O Darcy, por exemplo, se ele sentia que você estava se emocionando com o que ele estava dizendo, aí ele ia dizendo mais, e mais, e mais. Tem os dois lados, também. Mas é um controle emocional que qualquer pessoa teria que ter em qualquer profissão.
Existiu algum corte por motivo editorial?
Teve a entrevista com o Darcy Ribeiro, que estava maravilhosa, e eu queria dar em quatro páginas. Foi a entrevista mais marcante, eu acho. Por questões de espaço, o editor-chefe queria em duas páginas. Aí eu tive que cortar um monte de coisa. Quando eu trabalhava na editoria de política, havia alguns tabus. Algumas vezes, não muitas, pessoas do governo ligavam para pedir para não publicarmos determinadas matérias. Mas em muitas dessas vezes o editor segurava, não cortava a matéria.
O momento de apuração do livro é diferente da reportagem?
Sim. Se você está fazendo uma biografia ou um perfil, por exemplo, você tem que se basear muito em entrevistas. Agora a apuração é muito diferente, tem que ser mais criteriosa. Porque o livro vai ficar pra sempre, o jornal fica um dia. Tem que se checar datas, revisar fatos. É uma apuração bem mais pesada, mais minuciosa do que uma apuração de jornal. O que não quer dizer que o jornal não deve ser minucioso, bem apurado e cuidadoso. Mas o livro exige mais.
Você, que já ensinou jornalismo, acredita que as técnicas para conseguir uma boa entrevista são possíveis de ser ensinadas e aprendidas ou cada um desenvolve a sua a partir da experiência?
Se você já vai pra uma redação de jornal sabendo vários macetes, as técnicas de que você fala, isso ajuda muito. Se você tem um bom professor que vai te encaminhar para os lugares certos, pelos caminhos certos, pelas formas certas de você fazer a apuração, isso é muito bom. Mas eu acho que o tempo que vocês têm na faculdade é pra aprender a pensar, mais do que qualquer outra coisa. Como eu não fiz faculdade, eu sei que o jornalismo se aprende fazendo. O principal mesmo, você vai aprender na hora, com a experiência. O tempo da universidade é um tempo precioso, é pra trocar ideias, levantar questões, observar o mundo, pesquisar, ler, aproveitar, tirar o máximo dos professores. Porque se você não aprende a pensar, você não aprende nada na vida, nem a ser jornalista, nem a ser pintor, nem a ser economista.
Muitos alunos não aproveitam esse tempo, não lêem jornais, é para isso que vocês estão na universidade, pra aprender a lidar com o mundo, a questionar, a ler com olhos críticos, inclusive os jornais, porque são feitos por humanos que podem errar. Alguns alunos não desenvolvem esse olhar crítico que é importantíssimo no jornalismo. Outra coisa fundamental é a observação, que é algo a ser desenvolvido. Se você quer ser um bom jornalista, um bom escritor, você tem que aprender a observar o mundo que está em volta de você com muita atenção.
E a amizade com o entrevistado, atrapalha?
Não acho muito bom. O melhor é não ser amigo. Em Brasília, os jornalistas convivem muito com as fontes, sentam na mesma mesa, comem juntos. Se a pessoa consegue separar as coisas, ok, mas é muito difícil.
Você já conseguiu uma boa entrevista com alguém que não criava expectativa?
Várias vezes. Por exemplo, Cauby Peixoto. Porque ele foi tão sincero, ingênuo até, em falar das coisas dele. Achei que fosse ser algo dele contar mais da vida artística, mas ele falou coisas delicadas. Ele era muito entregue àquele personagem: Cauby. Ele até falou isso: “eu achava que eu fosse uma pessoa tão sem graça, sem valor, que eu acabei virando mesmo esse personagem”. A primeira entrevista que fiz com o Chico eu tentei achar um diferencial, porque ele estava lançando o disco As Cidades, e recebia um jornalista por vez para entrevistá-lo. No final, foi muito legal, porque as pessoas vinham me dizer que eu tinha feito a melhor entrevista, não sei por quê. Eu falava do tempo lá fora, dizia que estava frio, chuvoso, e isso tinha um pouco do clima do disco dele, triste, fui fazendo uma coisa meio literária, ele adorou. Claro que também tem aquelas pessoas que você vai entrevistar achando que vai ser uma maravilha e não é.
Existe alguém que você queira entrevistar e ainda não entrevistou?
Acho que gostaria de entrevistar mulheres, como a Bethânia, a Dilma, mas uma entrevista de coração. Eu gosto muito de entrevistar mulheres. Algumas pessoas jovens, também, que estão subindo agora, saber a vida que eles levam, o que desejam.
A carioca Regina Zappa é formada em literatura pela universidade de Georgetown, nos Estados Unidos, e começou no jornalismo como estagiária do Jornal do Brasil, em 1976, onde ficou até 1999. Na editoria internacional, cobriu importantes eventos, como o funeral de Agostinho Neto, em Angola, e o golpe militar contra Mikhail Gorbachev, na extinta União Soviética. Em um curto intervalo do Jornal do Brasil, em 1985, trabalhou na Última Hora, na TV Manchete e na revista Fatos, até 1986, ano em que voltou para o JB.
Em 1995, recebeu uma bolsa da Fundação Nieman na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Lecionou jornalismo na Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, por quatro anos, e parou em 2008. Assina 10 livros, entre eles as biografias de Hugo Carvana, Paulo Casé e Chico Buarque. Além das diversas reportagens, Regina também produziu três documentários: Edu Lobo, Vento Bravo (2001), que dirigiu com Beatriz Thielmann, A paixão segundo Callado (2007), roteiro seu e direção de José Joffily, e Avenida Brasil 500, produzido em conjunto com o fotógrafo Rogério Reis, um documentário afetivo ainda não lançado sobre a história do Jornal do Brasil.
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